Uma publicação recente que se tornou viral nas redes sociais gerou intenso debate ao comparar o salário mínimo em Portugal com o de outras nações europeias. A análise destacava a disparidade, sugerindo que o salário português seria 2,6 vezes inferior ao do Luxemburgo e 5,9 vezes inferior ao da Suíça. Contudo, uma verificação de factos revela um cenário mais complexo e imprecisões nos valores apresentados, embora a diferença de base se mantenha significativa.
Salários Mínimos: A Verdade dos Números
É factual que o Salário Mínimo Nacional (SMN) em Portugal está fixado nos 820 euros desde janeiro de 2024, após acordo em Concertação Social. O valor francês também está correto, situando-se nos 1.766,92 euros. O problema da comparação reside nos dados do Luxemburgo e da Suíça. No Luxemburgo, o “salário mínimo social” não é o valor citado. Desde setembro de 2023, está fixado em 2.570,94 euros para trabalhadores não qualificados (acima dos 18 anos) e ascende a 3.085,11 euros para trabalhadores qualificados, valores substancialmente superiores ao indicado na publicação.
No caso da Suíça, a imprecisão é ainda maior, pois não existe um salário mínimo nacional. Este é definido por cantões. Em Genebra, uma das zonas com custo de vida mais elevado, o valor aproxima-se dos 4.500 euros (4.426 francos suíços). No entanto, no cantão de Ticino, o valor obrigatório é significativamente mais baixo, rondando os 3.519 euros (3.458 francos suíços).
O Estrangulamento do Setor da Construção
A discussão sobre o poder de compra é indissociável da crise habitacional que o país atravessa. Estima-se que Portugal enfrente um défice de 150.000 a 200.000 moradias, mas a capacidade de resposta do setor da construção está “no limite”. Há duas décadas, construíam-se 100.000 casas por ano; hoje, a média situa-se nas 25.000, com um pico estimado de 28.000 este ano. Manuel Maria Gonçalves, diretor executivo da Associação Portuguesa de Promotores e Investidores Imobiliários (APPII), é claro: “Os preços só baixarão com um aumento da oferta, mas não há capacidade para mais”.
Os Fatores da Crise Habitacional
A incapacidade de resposta do mercado deve-se a um conjunto de fatores críticos. A indústria identifica uma grave escassez de mão de obra, estimada entre 80.000 a 100.000 trabalhadores. A isto soma-se uma carga fiscal “excessiva”, que pode representar até 40% do custo total dos projetos. A lentidão crónica nos processos de licenciamento camarário e a instabilidade gerada por medidas avulsas ao longo das legislaturas agravam o cenário.
Pacote Governamental Visto com Ceticismo
As medidas para a habitação anunciadas pelo Governo, embora descritas como “ambiciosas”, são recebidas pelo setor com reservas quanto à sua exequibilidade. A redução do IVA para 6% na construção é considerada “bem-vinda”, mas o seu impacto prático poderá ser lento. João Sousa, CEO do JPS Group, estima que a medida “talvez só tenha impacto em novos projetos de construção daqui a um ano e meio ou dois anos”. Acresce a instabilidade para os investidores, pois estas medidas estão “limitadas pelo ciclo político”.
Ausência de Verdadeiras “Medidas de Choque”
O consenso entre os promotores é que o pacote “não contém as medidas de choque necessárias” por não ser de aplicação imediata. José Rui Menezes e Castro, CEO do MAP Group, defende que “uma política de choque passaria por criar condições para que o parque habitacional existente esteja disponível no mercado”. O financiamento anunciado através do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR) e do Banco Europeu de Investimento (BEI) também é questionado, com críticas à falta de capacidade de execução e à gestão fragmentada dos fundos.
O Labirinto dos Licenciamentos
Mesmo a anunciada simplificação dos licenciamentos é vista como insuficiente. O arquiteto Nuno Malheiro salienta que o problema não reside apenas nos prazos de resposta, mas na insegurança jurídica criada pelas diferentes interpretações da mesma lei entre municípios. “Simplificar passa por unificar as regras em todos os municípios”, concluiu.